LÂMINA SUSPENSA NO AR
Naquele fim de tarde, eu tive medo.
Algo sério acontecia ao meu país, a meus ideais.
E eu só tinha vinte anos.
Peguei uma escova de dentes, algumas peças de roupa,
beijei minha mãe aflita, escrevi bilhete pro pai:
"Volto logo, não vai durar,
estarei em lugar seguro.
Não se preocupe,
não venha me procurar".
Nunca retornei.
Mas os homens fardados apareceram, num instante:
perguntaram, vasculharam,
rasgaram os meus livros, derrubaram a estante.
Minha mãe envelheceu dez anos,
meu pai também, e num segundo.
Vivo com a sensação de que lhes roubei alguma coisa
e que, por minha causa,
foram embora mais cedo deste mundo.
Madrugada escura, abracei meus pais às escondidas: o reencontro.
Casal e filha prontos para o exílio, a partida.
No peito um estranho sentimento,
como se eu devesse algo àquela casa de subúrbio,
que não assistiu ao meu casamento
e ao primeiro banho de minha menina.
64! Lâmina cruel, corte em minha vida,
desvio em minha sina.
Laura Esteves
( Como água que brota na fonte/ Editora Barcarola )
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