(Tela de Paloma Espínola para capa do CD "Quadro")
Pintura
sonora para o corpo
Vinte quatro é o número de significados,
registrado em um conceituado dicionário, para a palavra “Quadro”.
Acrescentemos, agora, mais um - que se mistura e amplia os demais.
“Quadro” é o título do cd de estreia de
Fernando Vilela, artista que, como sua obra, desdobra-se por ser múltiplo e, ao
mesmo tempo, único. Fernando é músico, ator, psicólogo e pós-graduado em
filosofia existencial. Tais títulos não são meras pompas. São buscas, trilhas,
textos e tessituras, caminhos que se fazem e se fizeram ao caminhar. Este
aventureiro, navegante, cavaleiro andante não se lança sem planos de voo e, por
isto, voa e ecoa alto, porque profundo e amplo.
Apurar os ouvidos, antes de tudo, para deixar-se
estranhar, entranhar-se, impregnar-se do incomum. Acolher o coração a vibrar, todo,
no corpo. E, do espanto, admirar.
Instrumentos de cordas acústicos, com alguns
retoques do sopro e da percussão, se alinham aos poemas e às influências
musicais do autor, criando um veículo sonoro e imagético a nos conduzir para
campos, mares, matas, amores, morros, conflitos e estados, de alma e
geográficos (como Minas Gerais e Rio de Janeiro), evocando a eternidade mutável
da natureza e de um homem comum dentro de nós. Há arranjos que se valem de
belos contrastes de timbres e do solo vocal com o coro de vozes, ora masculino,
ora feminino - reforçando a evocação de uma ancestralidade e dualidade que se
aninham. O canto-solo nem sempre é produzido por Fernando Vilela, o que dá mais
um colorido, tanto suave quanto intenso. Em uma das faixas, a afinada
intérprete infantil dá um deslumbramento particular ao trabalho. O encarte do
cd reproduz a tela especialmente criada para este fim. Ou seja, uma legítima
confraria de artistas esculpida em “Quadro”.
Com os ouvidos aguçados, escutei por três vezes
consecutivas o cd “Quadro”. Desenquadrei-me do óbvio. Ao final da sequência, o
som de uma britadeira entrou pela janela do meu apartamento. Ainda mergulhada
na experiência do sensível, estranhei o ruído que, em outros momentos, parecer-me-ia
comum. Não havia mais volta: a imersão já havia ocupado, por inteiro, meus
poros. E, assim, saí à rua em direção ao trabalho. Os transeuntes que, antes,
apenas passavam, estavam irremediavelmente unidos ao meu olhar apurado,
transformado e transformante de novos e abertos quadros: o ar, antes rarefeito,
transfigurou-se, arado pela arte. Um quadro
aberto ao que transcende o tempo: o templo do afeto.
Delayne Brasil
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